Afinal, o que é a primeira infância?
Chamamos de primeira infância a fase que vai do nascimento até os 6 anos de idade. Apesar de o conceito e a importância dessa fase serem conhecidos pelas mais diversas áreas da ciência, o termo ainda é praticamente ignorado pela população brasileira1. Em geral, quando mencionado, ele é associado ao período que começa aos 3 anos de idade, e não àquele que vai do nascimento aos 6 anos. O fato de a maioria dos adultos não se lembrar com clareza da época em que era um bebê contribui para que as pessoas deem menos importância a essa fase.2
Mesmo os artigos acadêmicos3 no Brasil não costumam se referir ao termo primeira infância. Quando usado, na maioria das vezes, é de maneira generalista, e não com a preocupação de definir uma fase da vida com importância e características próprias.4
A primeira infância engloba ainda a chamada primeiríssima infância (do nascimento aos 3 anos), que, segundo descobertas da neurociência, é uma das fases mais relevantes para o desenvolvimento cerebral5, quando a janela de oportunidade de desenvolvimento é maior.
Por isso, a primeira sugestão deste guia é: em seus textos, vídeos, palestras, posts, áudios ou publicações, quando falar da primeira infância, reforce que se trata do período que vai do nascimento até os 6 anos de idade. Você pode, inclusive, fazer isso de forma visual (veja quadro) para deixar ainda mais claro.

Por que comunicar a primeira infância?
Embora a maioria das pessoas sinta naturalmente uma simpatia por crianças pequenas, como sociedade nós prestamos pouca atenção a elas. De quase 21 milhões de crianças entre 0 e 6 anos no Brasil, um terço vive na pobreza ou na extrema pobreza 6. Há cerca de 300.000 crianças de 4 a 5 anos fora da pré-escola – apesar da obrigatoriedade. Na faixa dos 2 a 3 anos, mais de um terço está fora da creche não por escolha, mas por falta de vagas ou de instituições de ensino em sua região. Nas famílias que compõem o quartil mais pobre da população, só 26% frequentam a creche, menos da metade da taxa do quartil mais rico 7. Mais ainda: até a mortalidade infantil, que caía consistentemente, chegando quase à metade do que era no início do milênio, estancou e hoje está de volta ao patamar de 2015 8.
Isso tudo mostra o quão necessária e urgente é uma comunicação adequada e bem embasada, que amplie o entendimento sobre os múltiplos aspectos envolvidos no desenvolvimento infantil e fortaleça a noção de que a criança é uma pessoa em desenvolvimento e um sujeito de direitos 9 que deve ter importância central na sociedade (mais detalhes no capítulo 5).
O conhecimento disseminado pela comunicação permite à população ser mais crítica e capaz de exigir mais e melhores políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da primeira infância e mais qualidade dos serviços básicos oferecidos à gestante, à criança e à família.
De preferência, a comunicação deve ser objetiva e enfática, usando comparações para explicitar a real dimensão da primeira infância brasileira. Por exemplo:
- Existem 20.599.729 crianças de até 6 anos de idade no Brasil, o que corresponde a 10% da população total (208.494.900);
- O número de indivíduos na primeira infância no nosso país é maior do que a população inteira do Chile (18 milhões), ou duas vezes a população total de Portugal (10,3 milhões);
- O número de crianças de até 3 anos no Brasil é de 11.845.593 (IBGE 2018), uma população maior que países como Portugal e a de toda a Suécia (9,9 milhões).
8 motivos para investir nos primeiros anos
Da melhora no aprendizado à economia a longo prazo, não faltam argumentos para você citar e assim comprovar a importância de se investir na primeira infância. Veja alguns deles:
90% das conexões cerebrais ocorrem até os 6 anos de idade. Intervenções na primeira infância podem ter efeitos sobre a capacidade intelectual, a personalidade e o comportamento social futuros.10
Nesses primeiros anos de vida, as conexões neurais se formam a um ritmo de mais de 1 milhão por segundo. É uma oportunidade única. 11
Programas de desenvolvimento infantil na primeira infância – mesmo de nível mais básico – reduzem a mortalidade infantil.12
Os primeiros anos são fundamentais para o desenvolvimento da criança. Cientistas já comprovaram que oferecer condições favoráveis ao desenvolvimento infantil nos primeiros anos de vida é mais eficaz e gera menos custos do que tentar reverter ou minimizar os efeitos ou problemas futuros.13 Segundo o economista americano James Heckman, prêmio Nobel de Economia de 2000, programas de alta qualidade para crianças vulneráveis do nascimento aos 5 anos trazem retorno de até 13% sobre o investimento 14.
Dentre os benefícios, há ganhos no desenvolvimento cognitivo a curto prazo, melhora nos níveis de aprendizado a médio prazo e na escolaridade, empregabilidade, qualidade de vida e renda a longo prazo. No futuro, os salários de crianças pobres que frequentaram creches de qualidade em comparação com aquelas que não tiveram a mesma oportunidade chegam a ser 25% maiores, em média. 15
Crianças em situação de “vulnerabilidade social”, ou seja, em situação de miséria, negligência e abandono, tendem a ter menos oportunidades de desenvolvimento ao longo da vida. Com isso, quando adultas, podem dar continuidade a esse histórico social e familiar, produzindo o fenômeno conhecido como “ciclo intergeracional da pobreza”, que é quando a pobreza avança de uma geração para a outra. Para termos uma sociedade com mais igualdade de oportunidades, é fundamental que nossas leis e políticas públicas deem atenção à primeira infância e, em especial, às crianças em situação de vulnerabilidade social.16 Programas voltados ao tema são essenciais para quebrar esse ciclo.17 Um estudo chamado Perry Preschool, realizado no estado americano de Michigan, desde 1962, com alunos de 3 a 4 anos, mostrou o impacto intergeracional do cuidado na primeira infância. Hoje os participantes estão na faixa dos 50 anos e os pesquisadores veem bons resultados no que diz respeito a educação, saúde, emprego em tempo integral e redução da incidência de mau comportamento ou crime na vida dos filhos de quem participou do programa. O que confirma como a educação na primeira infância pode ser uma maneira eficaz de quebrar o ciclo de pobreza. 18
Viver em uma atmosfera ameaçadora, permeada pela violência, pobreza, abuso e negligência pode produzir alterações que afetam negativamente a criança por toda a vida. 19
O desenvolvimento na primeira infância está entre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável20, as metas globais definidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) e que devem ser cumpridas até 2030. A preocupação com a primeira infância está presente - direta ou indiretamente - em todos os 17 objetivos. 21
Informação fundamentada X antigas crenças
Existe um distanciamento entre os conceitos científicos e a visão do público brasileiro sobre o desenvolvimento na primeira infância. A comunicação é importante para fazer com que a população amplie esse conhecimento e possa adotar atitudes que contribuam para melhorar a atenção dada às crianças de até 6 anos no país.
Muitas vezes, a informação que o público toma como certa é exatamente o oposto do que os especialistas e as pesquisas indicam 22. Veja os principais ruídos identificados na comunicação da primeira infância:
Assunto | O que dizem os especialistas | Visão do público |
---|---|---|
Cuidados na gravidez | A gestação é um período sensível para o desenvolvimento infantil, pois nessa fase diversas estruturas estão em fase de formação e amadurecimento. | Dá bastante importância aos cuidados com a saúde durante a gestação, mas tem pouco conhecimento sobre a influência que o ambiente exerce sobre o feto. |
Cérebro | O cérebro é um órgão em processo de desenvolvimento, em especial durante a primeira infância. | Acredita que as estruturas cerebrais já estão prontas a partir do nascimento e que não há qualquer mudança no decorrer do crescimento da criança. |
Do nascimento aos 3 anos | A primeira infância é uma janela de oportunidade para que o desenvolvimento pleno da criança ocorra de maneira positiva. | Considera que o período mais importante da infância tem início somente aos 2 anos, pois há uma crença de que é a partir daí que começam a se formar as primeiras lembranças. |
Aprendizado | O aprendizado ocorre em todos os lugares. Atividades como andar, correr, falar, entre outras, fazem parte do desenvolvimento cognitivo. | Tende a limitar a escola como local preferencial de aprendizado. |
Desenvolvimento | Os tipos de desenvolvimento (físico, emocional, social e cognitivo) estão interligados, o crescimento deve ser integral. | O desenvolvimento da criança costuma ser visto de forma compartimentada. O crescimento físico é tratado de forma independente dos desenvolvimentos socioafetivo e cognitivo, porque a relação entre eles não está clara. |
Importância dos relacionamentos | O desenvolvimento cognitivo da criança é potencializado por relacionamentos significativos, dentro e fora da escola. | Sabe que o carinho dos adultos é importante, mas crê que ele influencia apenas o temperamento e a personalidade da criança. |
Papel da família | A criança tem um papel ativo no seu desenvolvimento e cabe aos pais lhe dar apoio, estimulando sua autonomia. | Ainda existe o pensamento de que o bom relacionamento entre pais e filhos deve ser marcado pela autoridade. |
Apoio profissional | O apoio profissional é necessário e importante para o desenvolvimento. | Esse tipo de apoio é visto com desconfiança, porque há o receio de haver interferência na autoridade dos pais. |
Ferramentas úteis
Com o objetivo de diminuir esses distanciamentos e ampliar o conhecimento dos brasileiros sobre o desenvolvimento na primeira infância, ao longo deste guia são apresentadas diversas ferramentas úteis para auxiliar na construção de uma comunicação mais eficiente e embasada. Elas ajudam a traduzir os conceitos científicos, facilitando o entendimento das informações pelo público em geral.
Entre essas ferramentas destacam-se as metáforas. Uma boa metáfora facilita o entendimento ao comparar questões complexas com elementos concretos e familiares. Ela prepara o caminho para comunicar os resultados científicos mais difíceis, pois é simples, visual, concreta, produtiva e impactante.
O Instituto Frameworks fez uma análise das metáforas desenvolvidas com base em pesquisas sobre desenvolvimento na primeira infância nos Estados Unidos e no Canadá e escolheu cinco para serem testadas e adaptadas à realidade brasileira.23 O objetivo foi sensibilizar o público e os formuladores de políticas públicas no Brasil em relação às contribuições do conhecimento científico na melhora das políticas de desenvolvimento na primeira infância. Algumas delas foram usadas nesta publicação.
Outras ferramentas apresentadas no guia são imagens, gráficos, infográficos, exemplos de comunicações bem estruturadas (incluindo campanhas, filmes, instalações, reportagens e blogs), sugestões de estudos, publicações e sites de referência para a produção de reportagens, campanhas, informativos e outros materiais de comunicação.
O papel do comunicador
Um bom comunicador consegue passar conceitos complexos de forma acessível e facilita o entendimento acerca da importância da primeira infância. Bem informada, a população age de forma mais adequada em relação às crianças de sua família e se torna mais atuante na luta por melhores políticas públicas de atendimento às crianças – e toda a sociedade lucra com os benefícios proporcionados pelo desenvolvimento infantil adequado. A atuação do comunicador, portanto, é fundamental para o desenvolvimento do país.
Confira algumas dicas para exercer bem esse papel:
- comunicar assuntos relativos à primeira infância com base em estudos e pesquisas;
- ter clareza sobre os objetivos que pretende alcançar;
- ter sempre em mente a responsabilidade de informar, sensibilizar e mobilizar o público;
- apresentar resultados e/ou impactos das ações e políticas voltadas para a primeira infância realizadas no país;
- buscar informações atualizadas e qualificadas para tratar das questões envolvidas no desenvolvimento infantil.
Navegue pelo site para ver mais conceitos, sugestões, dicas e exemplos que poderão ajudá-lo nessa tarefa.